O assessor da presidenta confessou minutos antes da entrevista: “Dilma Rousseff cresce com a pressão. Quanto mais pressionam, mais tranquila e centrada ela se sente. É uma questão de caráter”. Depois, acrescentou dois conselhos: “Façam as perguntas de maneira respeitosa. Se não, ela pode ser muito seca e simplesmente responder ‘sim’ ou ‘não’.
E sejam pacientes: ela é muito didática.
Se conhece muito bem os temas, pode falar duas horas sobre a dureza do mineral vulcânico que deve ser atravessado para chegar a um campo de petróleo”. A presidenta brasileira se lança hoje em seu Dia D particular. Neste domingo será possível saber, com bastante segurança, se Dilma Rousseff vai dar o passo decisivo para deixar o palácio do Planalto antes do tempo e pela porta de trás, expulsa por um Congresso hostil.
Um ano atrás, sua popularidade despencava, sua gestão econômica comia toda sua credibilidade e diariamente ganhava inimigos no hiperfragmentado e, por vezes surrealista, Congresso brasileiro. Mas o impeachment era apenas uma confusa ameaça improvável, citada como uma esperança distante por seus inimigos mais recalcitrantes. Não mais. Em poucas horas o Câmara dos Deputados vota, com o país convulso, pelo impeachment e a oposição está convencida de que conseguirá obter o apoio de 342 deputados, dois terços da Câmera, suficientes para enviar o processo aos senadores. A possibilidade de reverter o quadro era tão reduzida na noite de sábado que nem mesmo um grupo de parlamentares de sua base acreditava que ela conseguiria obter os 172 votos de deputados federais para barrar o processo agora, tampouco o apoio de 28 senadores para detê-lo nas próximas semanas, onde o impeachment será analisado, se passar na Câmara. O Governo ainda tinha esperança e negociava desesperadamente até o último momento, com ajuda dos governadores aliados, com os deputados indecisos em uma tentativa de mudar as previsões.
Segundo alguns especialistas, o caráter irredutível, estudioso, teimoso, reto e pouco dado à improvisação de Dilma Rousseff foi o determinante, tanto para a recessão, dada suas decisões em política econômica, como para sua impopularidade crescente entre os deputados que agora patrocinam o impeachment. “Ela é rigorosa, não sai do roteiro preciso, é uma tecnocrata, não uma política, se tranca no Palácio, entre relatórios, não gosta muito do contato com os deputados ou representantes de movimentos sociais, isso foi determinante, finalmente, para que o Congresso desses as costas”, diz o especialista em política brasileira Rudá Ricci.
No Congresso brasileiro, com quase trinta partidos diferentes, nos quais as ideologias muitas vezes se confundem, formar um Governo de coalizão estável é um exercício de malabarismo e de mão esquerda. É preciso saber dar, receber, afagar e transigir. O antecessor de Rousseff, seu mentor e a pessoa que a elegeu, Luiz Inácio Lula da Silva era um negociador hábil, capaz de encantar, ao mesmo tempo, seus seguidores e os opositores. Ainda assim, por um bom tempo não teve vida fácil com partidos escorregadios e, em especial, como o PMDB, a força com mais deputados no Congresso, chave para conseguir a paz parlamentar. Não por acaso o escândalo que marcaria para sempre a história do PT, o mensalão, ainda no primeiro mandato de Lula, teve como pano de fundo forjar uma maioria parlamentar com siglas menores para não ficar refém dos peemedebistas. O que veio depois provaria que nem a aliança formalizada com a escolha de um vice-presidente do PMDB, Michel Temer, em 2010, seria o seguro com que os petistas sonhavam. Uma segunda operação do Planalto para tentar enfraquecer o partido de Temer depois da reeleição em 2014 se mostraria igualmente desastrosa.
Quando os deputados aliados de Rousseff – agora na trincheira pró-impeachment – vinham reclamar orçamentos para obras em seus Estados, ela não os recebia com a mesma consideração – ou desconsideração –que qualquer outro deputado. Quando os deputados de vários partidos envolvidos no escândalo da Lava Jato também procuraram a presidenta para pedir proteção, ela não os recebeu. “E vai perder o posto por ser honesta”, diz Rudá Ricci. Cerca de 60% dos parlamentares do Congresso brasileiro enfrentam acusações de algum tipo, de acordo com números da Transparência Brasil. Na lista dos políticos envolvidos no Caso Petrobras estão o presidente do Congresso, Eduardo Cunha, seu algoz, e do Senado, Renan Calheiros, ainda com um pé na canoa governista, ambos do PMDB. É verdade que o Partido dos Trabalhadores (PT), a formação de Rousseff, é a força mais intoxicada nesta trama, com seu tesoureiro, João Vaccari, atualmente na prisão por aceitar subornos, além de delações que acusam a campanha de Rousseff de ter recebido dinheiro fruto de propina. É verdade que o Governo tentou até o fim negociar com o PP, partido com mais implicados no escândalo. Mas também é verdade que nem Rousseff nem sua família, à diferença de Fernando Collor de Mello que sofreu impeachment em 1992, nunca foram acusados de ter levado dinheiro para casa.
Seja como for, o caso Lava Jato não está formalmente no parecer que os deputados votarão neste domingo. Nele, a presidenta é acusada de crime de responsabilidade fiscal por assinar decretos de crédito suplementar sem a autorização do Legislativo, quando já sabia que não havia dinheiro suficiente, e por pedaladas fiscais no ano de 2015, o que o Governo naturalmente rejeita como crime.
A presidenta sempre lembra, quando perguntam se vai renunciar, que sua vida não foi fácil, que está acostumada a lutar. É capaz de interromper uma reunião para atender um telefonema urgente de seu médico em outra sala, ouvir nesse momento que sofre de câncer e retomar a reunião depois com um perfeito controle de si mesma sem que os outros fiquem sabendo de nada. Aos vinte anos estava filiada à formação clandestina de extrema-esquerda Política Operária.
Foi treinada para atirar e montar bombas. Foi presa e torturada durante vinte dias. Certa vez, recebeu tantos golpes no rosto que seu queixo desencaixou. Mas nunca revelou o endereço da casa que dividia com sua companheira Celeste. Há uma ficha policial relativa a essa prisão. Nela aparece Dilma, jovem, com cabelo encaracolado, óculos de tartaruga para miopia, mantendo o número da sua filiação. Em uma das seções está escrito “Não está arrependida”.
"A gente deveria ter duas vidas: uma para ensaiar e outra para viver. Eu tinha que ter ensaiado, mas fui obrigada a viver", disse a jornalistas nesta semana, citando um diretor italiano, quando questionada o que faria diferente no poder, se pudesse. A falta de ensaio político - Rousseff jamais foi eleita para nenhum cargo antes da presidência - talvez seja o fator mais lembrado para descrever suas fragilidades no cargo. Gosta de ler, ao contrário de seu mentor Lula, e no já longínquo 2011 era incensada na imprensa justamente por ser garota séria, estudiosa, tenaz e com boa memória. A economista que vem de uma boa família de Belo Horizonte se mostrava disposta a ser uma gerente estilo CEO do Brasil e, mesmo sem o carisma do antecessor, chegou a ser mais popular no cargo do que ele.
Todos esses elogios se desmanchariam em ácidas críticas dirigidas à presidenta que trava ao falar e muitas vezes faz confusão com as palavras e os números quando fala em público. Durante seu segundo mandato, o Brasil mergulhou na pior crise econômica de sua história moderna, a inflação voltou a ser um problema para o país, o desemprego subiu para perto de 10% e as agências de risco reduziram sua classificação ao status de junk bonds (títulos sem valor). Ela admite alguns erros, mas culpa, sobretudo, as diversas circunstâncias econômicas globais para explicar o colapso.
Foi a Lula a quem ela recorreu para tentar sanar sua falta de tato político e se salvar. O ex-presidente, impossibilitado pela Justiça de assumir um ministério, se empenhou pessoalmente em tentar convencer deputados. Ao lado de Rousseff, ele martelou nas últimas semanas que o impeachment, por sua base legal que consideram frágil, é um golpe. Na reta final, a presidenta disse com todas as letras que o vice Michel Temer, que herdará seu cargo em caso de derrota, era um conspirador que quer tomar o poder sem a legitimidade do voto popular. Lula repetiu uma e outra vez que se trata de um complô das elites contra o PT.
Se até agora não conseguiram convencer o Supremo Tribunal Federal de que se trata de um processo frágil nem conseguiram virar o jogo no Congresso, eles tentam falar ao menos a uma parte dos milhares de brasileiros que acompanharão a votação mobilizados nas ruas. Só em Brasília, são esperadas 300.000 pessoas a favor e contra o impeachment na frente do Congresso. Se não puderem vencer no plenário, querem ao menos marcar, de maneira indelével, a narrativa dos vencedores. “Vamos continuar insistindo de que o impeachment foi ilegal, de que foi um golpe. Em 1964, no princípio, não diziam que tinha havido um golpe, mas uma revolução. Anos mais tarde apareceram os que comprovaram que os que tomaram o poder estavam errados”, prometeu o deputado Rubens Pereira Júnior (PCdoB-MA). Dilma tem eco nas ruas, entre juristas, intelectuais, feministas, figuras públicas, como Luis Almagro, da Organização dos Estados Americanos, ou o cantor Chico Buarque. Algo que definitivamente, Fernando Collor, outro presidente brasileiro que sofreu impeachment em 1992, não teve.
Se derrotada em seu Dia D, Rousseff parece que não vai desistir. Ela mesma assegurava em uma entrevista recente que está disposta a aguentar “até o último segundo do segundo tempo”. De um lado, um Congresso adverso e inimigo. Do outro, uma presidenta com um caráter que não costuma ceder nem se render.
Fonte: Brasil ElPais