O médico espanhol Rafael de Quinta Frutos, de 61 anos, foi um dos primeiros estrangeiros do programa 'Mais Médicos' a desembarcarem no país e chegou à Paraíba em 2013 para trabalhar no posto de saúde do município de Baía da Traição, no Litoral Norte do estado. Depois de dois anos trabalhando em área habitada por indígenas, ele lida com um vocabulário que está além do seu bom português, mas reclama de ser alvo de preconceito dos colegas.
“Eu sou o médico que atende mais pessoas na Baía (da Traição). Todos os outros médicos atendem menos pacientes que eu porque sou eu quem fica mais tempo no posto e porque as pessoas gostam muito de mim e me procuram. Mas quando eu envio um paciente para um hospital, eu digo pra eles falarem que o médico é um ‘cubano ruim’”, disse.
Ele explicou que, a princípio, atendia os pacientes com naturalidade, mas que os médicos brasileiros falavam mal dele sem nem conhecê-lo. “Diziam que o remédio não servia para nada, me criticavam. Quando eu mandava fazer raio-x, ultrassom, não faziam nada do que eu mandava. Porque o meu registro delata que sou do programa Mais Médicos”, relatou o estrangeiro.
A partir disso, ele diz que se viu obrigado a pedir que os seus pacientes mentissem para os médicos do hospital. “Quando eles precisam de um raio-x, eu mando dizer que eu me neguei a solicitar um raio-x. Então, na urgência, eles solicitam o raio-x sem problemas. Se no laudo eu indico um exame, eles dizem que não precisa. Eu faço isso porque penso que eles precisam e não têm condições de gastar esse dinheiro”, comentou.
O diretor de Fiscalização do Conselho Regional de Medicina (CRM), João Alberto, explicou que a responsabilidade do conselho é apenas em relação aos médicos brasileiros e que não tem conhecimento da qualificação dos estrangeiros trazidos pelo Mais Médicos. “Nós não podemos obrigar um colega a atender às solicitações de um médico que ele não sabe se é médico. Mas se algum profissional, como o espanhol, tiver dificuldades, ele pode nos procurar”, declarou.
Barreira de idioma
Rafael Frutos escolheu trabalhar em Baía da Traição por conta da esposa dele, que é paraibana. Devido à convivência, ele não tem problemas com o português e, apesar do sotaque, é bem entendido e consegue compreender perfeitamente o que lhe é falado. Porém, grande parte do município de Baía da Traição está dentro de reservas indígenas dos Potiguaras e muitos habitantes têm formas bem peculiares de falar.
“Em João Pessoa eu não tenho nenhum problema, entendo todo mundo. Mas na Baía existem palavras típicas dos indígenas e isso às vezes causa alguma dificuldade, eu fico meio perdido. Além disso, a maioria não sabe ler, fala mal o próprio português. Acho que outra pessoa, que vier do Rio de Janeiro por exemplo, vai ter a mesma dificuldade que eu tenho”, explicou.
Estrutura precária
Uma casa foi organizada para funcionar como posto de saúde no município e o espanhol é o único médico que atende nesse ambiente. Segundo ele, a estrutura é precária. “Na Espanha, eu só pegava na caneta para assinar, era tudo no computador. Não era necessário nem imprimir a receita, ela ficava registrada no cartão do ‘SUS’ de lá. Aqui não tem nem computador”, exemplificou.
Ele ainda reclamou da constante falta de medicamentos e de atraso nos pagamentos dos auxílios moradia e alimentação dele e do salário da recepcionista do posto de saúde, que são de responsabilidade da Prefeitura. De acordo com ele, apenas o salário dele, pago pelo Governo Federal, está em dia.
O prefeito de Baía da Traição, Manuel Messias, disse que o município está endividado e que, por causa da crise, a tendência é piorar. “Eu não posso fazer mais do que estou fazendo. O dinheiro não dá para pagar, por isso que a folha está atrasada. O repasse do FPM [Fundo de Participação dos Municípios] diminuiu mais de R$ 100 mil comparado a anos anteriores. O 'Mais Médicos', eu nem pedi pra cá. Colocaram aqui e eu tive que aceitar”, justificou.
Conhecimento
Antes de chegar ao Brasil, Rafael Frutos acreditava que ia poder contribuir para melhorar o sistema de saúde do país. Porém, ele disse que estava enganado. “Eu comentava que os brasileiros eram inteligentes porque iam aprender com a experiência de gente formada no exterior, em países mais desenvolvidos, mas isso não aconteceu. A gente veio para atender pessoas e só”, disse.
O médico explicou que antes trabalhava como cirurgião em um hospital e que tinha muito a ensinar. Ele tinha a expectativa de poder compartilhar esse conhecimento, mas, segundo ele, isso não foi aproveitado. “Ninguém pergunta como funciona na Espanha. Eu já sabia que vinha aqui para isso, mas esperava algum interesse maior”, afirmou.
Motivação
Apesar de todas as dificuldades, o espanhol consegue encontrar motivações para continuar trabalhando na Paraíba. “Eu acho que a ajuda que eu sou para a pobre gente daqui, ainda que seja muito básica, é fundamental para eles. A gente está fazendo um trabalho muito bom no geral e aqui, ele é necessário”, disparou.
“Estamos tirando muita dor das pessoas, pessoas que não têm possibilidade econômica nem para fazer um exame de sangue. É muito triste perguntar se alguém tem condições de comprar um remédio. Eu ainda não me acostumei a essa pergunta. Me dói o coração saber que alguém não tem condições. Hoje mesmo tinha uma criança com suspeita de dengue hemorrágica, que tinha que ser levada para o hospital, mas a mãe não tinha carro. É uma situação difícil”, lamentou.
Fonte: G1 Paraíba